Ao longo do desenvolvimento humano, à medida que experimentamos emoções complexas, nossa personalidade, comportamento e relações sociais são constantemente moldados. Por exemplo, entre essas emoções, a culpa e a vergonha desempenham um papel central, pois funcionam como mecanismos de regulação interna de nossos desejos e ações. Partindo da teoria psicanalítica de Sigmund Freud, percebemos que essas emoções são fortemente influenciadas pelo superego — a instância psíquica que internaliza valores, normas e regras sociais, sendo também responsável pela autocrítica. Dessa forma, neste contexto, exploramos o conceito de culpa e vergonha. Além disso, analisamos seus impactos na vida psíquica e abordamos os principais estudos que discutem a relação dessas emoções com o funcionamento do superego.
O Que São Culpa e Vergonha? Diferenciando Conceitos
Apesar de frequentemente serem tratados como sinônimos, culpa e vergonha apresentam diferenças importantes em sua origem e funcionamento.
Culpa
A culpa, do ponto de vista psicológico, é uma emoção que surge quando identificamos que cometemos um erro ou transgredimos uma norma, seja ela social, moral ou pessoal. A pessoa que sente culpa geralmente reconhece responsabilidade direta por seus atos e deseja reparar o dano causado, busca redenção ou perdão. Nas palavras de Freud, a culpa acontece quando há conflito entre o desejo do id (impulsos instintivos) e as proibições do superego, originando um sentimento de mal-estar e necessidade de compensação.
Vergonha
Por outro lado, a vergonha está mais associada à exposição pública de uma falha, seja ela real ou imaginária. Diferentemente da culpa, não basta apenas a transgressão para que a vergonha surja. Na verdade, é necessário também vivenciar a percepção de um julgamento negativo por parte do outro; assim, a pessoa acaba se sentindo inadequada, insuficiente ou até mesmo defeituosa.
A vergonha costuma provocar o desejo de fugir ou esconder-se, pois há medo de ser rejeitado ou excluído do convívio social.
É possível notar, então, que enquanto a culpa está relacionada a erros e à reparação, a vergonha está diretamente ligada à identidade e à aceitação social.
O Surgimento do Superego e o Papel na Origem da Culpa e Vergonha
Segundo Freud, a mente humana estrutura-se em três partes principais: id, ego e superego. O id representa nossos impulsos primitivos; o ego, o mediador com a realidade; e o superego, nossa voz moral e crítica interna.
O superego é formado principalmente durante a infância, por meio da internalização dos valores, proibições e ideias dos pais e de outras figuras de autoridade. Além disso, ele funciona como um juiz interno, avaliando nossos desejos, pensamentos e comportamentos. Consequentemente, quando agimos ou desejamos agir de modo oposto às regras estabelecidas, é o superego que ativa os sentimentos de culpa e vergonha para, assim, nos regular.
O Superego e a Culpa
A culpa é um dos principais mecanismos de atuação do superego. Quando uma criança é punida ou repreendida por um comportamento inadequado, aprende que certas atitudes são inaceitáveis. Ao internalizar essas regras durante o desenvolvimento, passa a sentir culpa quando pensa ou age contrariando essas normas, mesmo que ninguém descubra. Essa culpa pode ser útil, guiando comportamentos éticos, mas também pode ser excessiva, levando a angústia e auto-punição.
O Superego e a Vergonha
A vergonha, embora também possa ser influenciada pelo superego, tem um caráter mais relacional. Ela surge, especialmente, diante da possibilidade de sermos vistos negativamente por outras pessoas. Desse modo, o superego, atuando como um crítico interno, antecipa o julgamento alheio e, consequentemente, desencadeia a vergonha quando acredita que a imagem projetada não corresponde aos padrões sociais aceitos.
Diferenças de Intensidade e Origem
Enquanto a culpa pode ocorrer mesmo sem testemunhas (é interna), a vergonha, em geral, depende de um contexto social, real ou imaginário. Ambas derivam dos ensinamentos e punições (reais ou simbólicas) do superego, mas a sua manifestação e intensidade variam conforme a cultura, as experiências pessoais e a rigidez do superego formado.
Estudos Sobre Culpa e Vergonha na Psicologia e Psicanálise
Diversos estudos buscam entender a origem, função e impacto desses sentimentos, especialmente na saúde mental dos indivíduos.
Estudos de Lewis (1971)
Helen Block Lewis é uma das autoras de referência quando o assunto é culpa e vergonha. Em seus estudos, destacou que a vergonha tem potencial de ser mais destrutiva e paralisante do que a culpa. Para Lewis, a vergonha está ligada à avaliação global de si mesmo como inadequado, enquanto a culpa está relacionada à avaliação de uma conduta específica como errada. Isso faz com que a vergonha, muitas vezes, leve ao isolamento e ao afastamento social.
Culpa, Vergonha e Psicopatologias
Pesquisas indicam que níveis elevados, crônicos ou distorcidos de culpa e vergonha podem, consequentemente, estar associados a diversos quadros patológicos. Entre eles, destacam-se, por exemplo, a depressão, a ansiedade, os transtornos alimentares, o transtorno obsessivo-compulsivo e também a personalidade borderline.
Isso acontece porque o superego excessivamente rígido ou punitivo pode transformar a culpa adaptativa (que leva ao arrependimento e à mudança) em autoacusação destrutiva; e a vergonha em sentimento crônico de inadequação, afetando autoestima e capacidade de manter relações saudáveis.
Estudos Culturais
A cultura exerce grande influência na formação do superego, nos padrões de culpa e vergonha. Sociedades coletivistas tendem a valorizar mais a vergonha – sentimento relacionado à imagem e reputação no grupo – enquanto sociedades individualistas tendem a acentuar a culpa – ligada à responsabilidade e à consciência individual.
Culpa e Vergonha na Clínica Psicanalítica
No contexto clínico, analisar culpa e vergonha é fundamental para compreender quadros psíquicos e promover a saúde mental.
Estratégias de Enfrentamento
Um dos objetivos do trabalho psicoterapêutico é, primeiramente, ajudar o indivíduo a reconhecer, nomear e diferenciar esses sentimentos. Muitas vezes, porém, a pessoa sente vergonha, o que pode levá-la a se incapacitar, isolar-se e evitar situações de contato. Em outros casos, por outro lado, a culpa torna-se o sentimento dominante, conduzindo à autopunição constante e à incapacidade de experimentar prazer.
Nesse contexto, a clínica busca acolher a emoção do paciente e trabalhar sua origem — que, frequentemente, está relacionada a interdições parentais introjetadas. Ademais, procura-se flexibilizar o superego, além de desenvolver estratégias de autoperdão e promover a reintegração social.
Papel do Perdão e da Reparação
Freud já apontava que o sentimento de culpa pode ser aliviado por meio da reparação do dano — seja pedindo desculpas, fazendo algo bom para quem foi prejudicado, ou mudando de atitude. Na vergonha, o caminho é mais difícil, pois está ligada à identidade, mas ter um ambiente de empatia e aceitação pode ajudar a pessoa a reafirmar seu valor e desenvolver autocompaixão.
Culpa e Vergonha: Efeitos nas Relações Sociais e Vida Cotidiana
Essas emoções influenciam profundamente nossos comportamentos em família, no trabalho, nas amizades e na maneira como vemos a nós mesmos.
Efeitos da Culpa
Pessoas dominadas pela culpa, frequentemente, podem ser excessivamente submissas e, além disso, ter dificuldade em dizer não. Consequentemente, tendem a assumir responsabilidades injustificadas e, por isso, acabam se sentindo cronicamente insatisfeitas. Em casos extremos, contudo, a culpa pode predispor à autossabotagem e, desse modo, prejudicar conquistas pessoais e profissionais.
Efeitos da Vergonha
A vergonha, por sua vez, pode levar ao isolamento, à dificuldade de exposição (até mesmo dificuldades em falar em público), ao medo de julgamento e à sensação de nunca ser bom o suficiente. Pessoas marcadas pela vergonha tendem a evitar riscos e desafios, pois temem errar e serem expostas.
O Círculo Vicioso
Muitas vezes, culpa e vergonha tornam-se sentimentos indissociáveis, alimentando-se um do outro. Por exemplo, alguém que sente vergonha por um erro pode sentir culpa por evitar solucionar o problema, perpetuando autocrítica e sofrimento.
Superego Saudável: Como Resgatar o Equilíbrio
Um superego saudável é capaz de orientar e proteger, sem paralisar por sentimentos exagerados de culpa ou de vergonha. Isso é conquistado ao longo da vida, por meio de experiências de aceitação, reconhecimento e autonomia.
Caminhos Para um Superego Mais Flexível
- Autoconhecimento: Identificar padrões de autocrítica exagerada e trabalhar a aceitação das próprias imperfeições.
- Terapia: Processos psicoterapêuticos ajudam a ressignificar experiências dolorosas e flexibilizar normas internalizadas de maneira rígida.
- Relacionamentos Saudáveis: Cercar-se de relações em que há espaço para erros e reparação, sem julgamentos destrutivos.
- Autocompaixão: Praticar o auto perdão e reconhecer que errar é parte inerente à condição humana.
Considerações Finais
Culpa e vergonha são emoções essenciais ao convívio humano e à formação ética de cada pessoa. No entanto, níveis excessivos dessas emoções, fomentados por um superego inflexível, podem trazer sofrimento psíquico intenso, impactando o desenvolvimento emocional, os relacionamentos e a saúde mental.
Por isso, olhar para culpa e vergonha com compreensão, buscar ajuda quando necessário e trabalhar o fortalecimento do superego saudável são passos fundamentais. Assim, podemos viver de modo mais autêntico, com responsabilidade, aceitação e compaixão por nós mesmos e pelos outros.
Referências bibliográficas
1. Freud, S. (1923). O Ego e o Id – https://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/02303000
2. Lansky, M. R. (1997). Shame and the Subjective Experience of the Superego. The Psychoanalytic Quarterly, 66(1), 1-29. – https://guilfordjournals.com/doi/abs/10.1002/j.2167-4086.1997.tb01411.x
3. Lewis, H. B. (1971). Shame and Guilt in Neurosis. Madison: International Universities Press. – https://archive.org/details/shameguiltinneur00lewi](https://archive.org/details/shameguiltinneur00lewi
4. Kaufman, G. (1993). The Psychology of Shame: Theory and Treatment of Shame-Based Syndromes (2nd ed.). Routledge. – https://www.routledge.com/The-Psychology-of-Shame-Theory-and-Treatment-of-Shame-Based-Syndromes/Kaufman/p/book/9780415603760
5. Tangney, J. P., Stuewig, J., & Mashek, D. J. (2007). Moral emotions and moral behavior. Annual Review of Psychology, 58, 345-372. – https://www.annualreviews.org/doi/10.1146/annurev.psych.56.091103.070145
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